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ALIENAÇÃO PARENTAL: como a lei pode contribuir na desigualdade de gênero na justiça?

A Síndrome de Alienação Parental- SAP- é uma criação da década de 80 do psiquiatra norte-americano Richard Gardner, definida por ele como uma enfermidade mental da criança, desenvolvida durante o processo de litígio conjugal e caracterizada pela rejeição a um dos genitores, como consequência da manipulação exercida pelo outro, em geral motivada por sentimentos de rancor, vingança e mágoa.

Ainda que rechaçada pela associação de psicologia dos EUA, pela OMS e não figurando em qualquer manual de catalogação de doenças em razão da ausência de comprovação científica pela comunidade médica, a teoria da SAP foi importada para o Brasil dando origem à lei 12.318/2010.

Em seu artigo 2º, a lei prevê que “considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.” Existem diversas formas de praticar alienação, desde que com a finalidade mencionada. Quando constatada, há uma série de sanções para o guardião, dentre elas a fixação de multa, alteração da guarda- que será fixada em favor do alienado- e suspensão da autoridade parental.


A lei foi promulgada no intuito de proteger o melhor interesse de crianças e adolescentes, garantindo-lhes um convívio saudável com o genitor não guardião. Todavia, falha ao desconsiderar que a separação do casal é um evento traumático na vida dos filhos e a rejeição a um dos genitores pode decorrer de inúmeros fatores que não necessariamente a campanha de desqualificação. Ocorre que, apesar de ter um intuito protetivo, a aplicação da lei pode representar um perigo às crianças e adolescentes. Ao caracterizar “falsas denúncias” como ato de "alienação parental”, a lei tem sido utilizada como matéria de defesa de homens em processos com alegações de violência doméstica e abuso sexual. Assim, a LAP tem contribuído para relativizar o abuso de crianças, na medida em que funciona como um conselho aos juízes de que não devem levar a sério alegações de violência sexual, em processos de guarda de crianças.

O mesmo se dá quando há alegação de violência doméstica pela mulher: nestes casos, é comum que se considere, sobretudo em juízos de família, que se as agressões físicas não são dirigidas às crianças, apenas às mulheres. Nesse raciocínio, a rejeição das crianças aos genitores agressores seria injustificada, desconsiderando-se o trauma de vivenciar a violência à uma pessoa amada. Ao invés de se investigar detalhadamente – e de forma multidisciplinar- quais os motivos (e se de fato existem) da recusa ao genitor, o filho e o guardião têm suas narrativas deslegitimadas e banalizadas. Ao mesmo tempo, a condição da mulher passa de vítima de violência à suspeita de alienadora que, se confirmada, pode lhe custar a guarda de filho. É pois, mais seguro que se averigue extensivamente a ocorrência ou não da alienação parental, do que se exponha a criança/adolescente a algum tipo de risco em razão da alteração premeditada da guarda ou visitas.

Ademais, a quantidade de vezes em que a alienação parental é comprovada nos processos é ínfima diante do número de ações em que é alegada. Logo, a alienação parental é muito antes um discurso do que uma síndrome. Discurso misógino de favorecimento aos homens que se utilizam do estereótipo de gênero para obter êxito em suas pretensões jurídicas.


Com efeito, uma espécie de violência contra a mulher é a dificuldade de acesso à justiça em condições paritárias aos homens, causada, dentre outros fatores, pela existência de legislações discriminatórias a exemplo da lei de alienação parental. Em um país em que as famílias monoparentais são predominantemente lideradas por mulheres; em que em 78,8% dos divórcios as mulheres assumem a responsabilidade da guarda dos filhos; em que aproximadamente 5.5 milhões de crianças não possuem pai registral, o guardião é predominantemente a mãe. Consequentemente, o que a lei 12.318/2010 faz é colocá-la no papel de alienadora, ao tempo em que os homens são vítimas de vingança e retaliação dessas mulheres, que possuem dificuldade em separar a relação conjugal e parental, conforme já adianta a exposição de motivos da lei.

Esquece-se que a divisão sexual do trabalho impôs às mulheres os deveres associados ao cuidado e a reprodução. A ausência de equidade na divisão da responsabilidade parental existe ainda durante a conjugalidade e é uma herança do patriarcado. Não se trata de uma “picuinha materna” ou sentimentos mesquinhos de vingança no contexto do pós-divórcio, como faz parecer a lei de alienação parental.

Ainda que muitos desses pais não queiram efetivamente a inversão da guarda, a alegação da alienação é utilizada para barganhar benefícios a favor dos homens. Os pais normalmente possuem maior capacidade emocional nos litígios, assim como maior poder econômico-financeiro de custear um processo judicial longo. Muitos inclusive desenvolvem uma “litigância abusiva”, ao utilizar táticas processuais para intimidar mulheres, exortando-a as aceitar uma partilha menos vantajosa ou uma pensão menor a que teriam direito. As mães, aterrorizadas com a possibilidade de perda da guarda dos filhos, ficam em uma clara desvantagem econômica.


A lei de alienação parental apresenta-se como (mais) um instrumento de controle masculino sobre a vida e a individualidade da mulher. Diante da negativa de acesso do pai à criança ou adolescente por um motivo justificado e que atenda ao melhor interesse do filho pela genitora, paira no ar a ameaça de uma alegação de alienação parental. A situação fica ainda mais instável e dramática quando o regime de visitas é livre e o genitor aparece a qualquer hora, sem aviso prévio, esperando que a guardiã e o filho estejam eternamente à disposição para o exercício da convivência, que inclusive muitas vezes sequer ocorre, pelo total descaso/desinteresse dele.

Isto não significa negar que há pais e mães que instrumentalizam a criança e que se comportam com falta de ética no momento do divórcio, mas não se pode generalizar e tampouco usar a justiça para resolver problemas morais e relacionais. Pode tentar-se a mediação familiar ou medidas de aproximação entre o pai e o filho. Não cabe, no entanto, ao judiciário impor sentimentos ou criar vínculos. Ocorre que, exemplo de outras situações delicadas, a Lei de Alienação Parental despertou a expectativa de resolução de questões sociais complexas por meio da judicialização.

Por esses motivos, o CONANDA já manifestou preocupação em relação à cientificidade da SAP. E, no intuito de pedir a revogação dessa lei, existem atualmente uma ADI (nº 6273) e dois projetos de lei, nº 6371/2019 e nº 498/2018 que tramitam, respectivamente, na Câmara dos Deputados e no Senado. Nesse último, inclusive, o MPF emitiu parecer afirmando que “não se trata aqui de má utilização de um instrumento normativo útil, mas de uma norma que se mostra frágil para os objetivos a que se pretende e inconstitucional, [...] uma ferramenta de coerção violenta, castradora e opressora de atores envolvidos (principalmente mulheres e crianças) nas lides familiares, que gera dor e sofrimento, de forma que os meios empregados em nada se relacionam com os fins constitucionalmente pretendidos”, representando um retrocesso na esfera de direitos humanos desses sujeitos.

Cabe referir que atualmente o Brasil é o único país com uma legislação específica sobre o tema.


O que fazer então?

  • Lembre-se sempre que o momento da separação é difícil e doloroso para todos, por isso não desconte sua frustração ou mágoa no filho. Ele tem direito de manter uma relação próxima e saudável com o genitor não guardião.

  • Sempre que precisar negar/remarcar visitas previamente definidas, o faça exclusivamente por motivos do interesse da criança/adolescente e preferencialmente se cerque de provas que atestem a justificativa dada. Faça isso sempre por escrito e dando o máximo de detalhes pertinentes sobre a situação. Mostre-se disposta a remarcar a visita assim que possível. De preferência avise com antecedência para não frustrar expectativas.

  • Se for surpreendida com uma alegação de alienação parental no curso de um processo, procure uma especialista na área para a melhor condução dessa questão. Leia sobre a necessidade de uma advocacia para mulheres aqui: https://www.advocaciaparamulheres.com/post/blogujte-ze-sv%C3%A9ho-zve%C5%99ejn%C4%9Bn%C3%A9ho-webu-a-z-mobilu


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REFERÊNCIAS:

CRUZ, Rubia. Alienação parental: uma nova forma de violência contra a

Mulher. Justificando, 2017. Disponível em <http://www.justificando.com/2017/08/23/alienacaoparental-uma-nova-forma-de-

violencia-contramulher/>


SOTTOMAYOR, Maria Clara. Uma análise crítica da síndrome de alienação parental e

os riscos da sua utilização nos tribunais de família. JULGAR - N.º 13 – 2011.

Disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/073-107-

Aliena%C3%A7%C3%A3o-parental.pdf


NOTA TÉCNICA Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher

(NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo Nº 01/2019. Análise da lei

federal 12.318/2010 que dispõe sobre “alienação parental, 2019.


SOUSA, Analicia Martins. Alegações de alienação parental: uma revisão sobre a

jurisprudência brasileira. In: BORZUK, Cristiane Souza e MARTINS, Rita de Cassia

Andrade( Org.). Psicologia e Processos psicossoais. Goiânia: Editora da Imprensa

Universitária, 2019.


http://www.justificando.com/2018/09/17/organizacoes-pedem-restricoes-ao-uso-da-lei-

da-alienacao-parental/


http://themis.org.br/entenda-como-lei-de-alienacao-parental-pode-ser-considerada-

violencia-de-genero-contra-mulheres-e-representar-risco-as-criancas/


https://jus.com.br/artigos/51901/duas-abordagens-a-mesma-arrogante-ignorancia-como-

a-sap-e-a-violencia-domestica-se-tornaram-irmas-siamesas

                                                                                                                               

Agência Câmara de Notícias- https://www.camara.leg.br/noticias/548744-lei-de-

alienacao-parental-desestimula-denuncias-de-abuso-sexual-e-violencia-domestica-

apontam-debatedores/

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